Mitologia nos quadrinhos e a identificação com o leitor

Qual o mecanismo narrativo que faz com que você não ache um despautério um homem se transformar em uma enorme criatura verde, outro voar com uma armadura dourada, uma mulher se tornar invisível e outra ter um laço que te força a dizer a verdade? Até aonde é possível acreditarmos no que lemos/vemos em uma história de arte sequencial? Qual é o pacto que se instaura entre o personagem e o leitor par aque isso se suceda?
Talvez esteja no mito a resposta desses e outros questionamentos...

— por Victor Almeida



Marcelo Bulhões, em seu livro A Ficção nas Mídias ampara-se nas ideias de Aristóteles para diferenciar as verossimilhanças externa e interna na ficção. Enquanto a primeira remete às referências exteriores à obra narrativo-ficcional, estando, portanto, em conformidade com o mundo palpável e com os princípios e regras aceitos pela sociedade, a segunda dá importância à disposição interna dos elementos de uma obra, à sua coerência estrutural, sem que lhe seja exigida obediência às leis consideradas plausíveis pelo senso comum. De acordo com o autor, o pensamento aristotélico dá primazia à verossimilhança interna, respaldando a ideia de autonomia da criação artístico-ficcional. (Bulhões, 2009, p. 31).
Exemplifiquemos: é de senso comum que homens não podem voar e que ao comer espinafre nossos músculos não triplicarão de tamanho e nos tornarão instantaneamente fortes. Contudo, tal lógica apresenta coerência estrutural, torna-se aceitável naquele meio e tão somente naquele meio. Se a Retórica parte de um pressuposto de uma verossimilhança que pode se tornar uma verdade para alguém, os quadrinhos adaptam tal lógica, ao propor um simulacro de nossa realidade, com situações completamente inverossímeis, porém com uma coerência interna tão forte, que acaba conquistando uma adesão. Em outras palavras, mesmo com referências ao mundo em que vivemos, você sabe que aquilo que foi contado é uma mentira, uma situação impossível, mas a mensagem chega a você intacta, às vezes com mais clareza e força que uma biografia ou um documentário. Não é à toa que duas das formas mais expressivas de orientação/educação surgem da ficção: a mitologia e a fábula.
Nos quadrinhos, como a mensagem pode ser passada? Por escolhas que auxiliarão na fluidez da narrativa e na assimilação do conteúdo. Aristóteles determina três tipos de meios de prova artísticos — argumentos do orador:
§  Ethos – derivados do próprio autor, que empresta credibilidade à causa;
§  Pathos – Onde o orador procura lidar com a emoção do auditório;
§  Logos – derivados da razão.

Algumas obras de arte sequencial são determinadas parcialmente como um direcionamento do tipo Ethos, como Persépolis de Marjorie Satrapi e Maus, de Art Spiegelman. Porém, o mais comum são obras que utilizam o tipo Pathos, trabalhando o imaginário popular de forma arquetípica. A relação com o auditório é extremamente relevante para que a mensagem seja passada. Segundo Perelman & Tyteca, auditório consiste no "conjunto de todos aqueles que o orador quer influenciar mediante o seu discurso" (2005, p. 237). Sendo assim, o autor produzirá sua obra pensando no público para quem escreve e a mensagem que transmitirá. Para tanto, a visão de mundo do autor será posta no papel a partir de um meio que conquiste o sentimento ou a atenção desse público. Saber dominar esses recursos torna-se, portanto, fundamental. E no caso das HQs, para que esse direcionamento ocorra com sucesso, algumas estratégias são muito bem vindas.
Principalmente a relação entre a ficção e a realidade.

Relação entre ficção e realidade
A ligação do personagem com o leitor é crucial de ser analisada e a melhor forma de exemplificá-la talvez seja contrapondo formas distintas de ver o conceito de mito. Em parte baseada no historiador romeno Mircea Eliade, Karen Armstrong (2005) ressalta que a ideia de mito, inicialmente, servia como uma criação humana que intencionava explicar questões que o homem não consegue responder (por exemplo, como a chuva cai e as estações do ano):
...o mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicialmente não temos palavras. Portanto, o mito contempla o âmago de um imenso silêncio [...] o mito não é uma história que nos contam por contar. Ele nos mostra como devemos nos comportar... (Armstrong, 2005, p. 9)

Caixa de texto:  Fig 2.2 Ilustração de Akira Toriyamacomparando Goku e o mito de Sun Wukong.
Ilustração de Akira Toriyama
comparando Goku e o mito de Sun Wukong.
Para a autora, na contemporaneidade essa definição se torna ultrapassada a partir de uma sociedade calcada em bases econômicas, científicas e racionais. Autores como John Locke, no século XVII e Thomas H. Huxley e Ludwig Feuerbach, no século XIX, ratificam esse argumento com suas respectivas teorias, nas quais acreditavam, de forma veemente, na diferenciação indivisível entre mitologia e ciência racional.[1] Entretanto, mesmo havendo coerência no pensamento de cada um desses autores, principalmente se estabelecermos relação com a mentalidade da época, é preciso que se torne explícita a diferença entre acreditar em um mito como verdade e o mito como forma de passar uma verdade.
A partir dessa segunda proposta, o mito e o herói mitológico, por consequência, não devem desaparecer, dadas suas importâncias como exemplos ou lições de vida (mais uma vez, saliento o papel das fábulas como forma de educação). O personagem mitológico pode ser descrito, dessa maneira, sob um conceito junguiano, como narrativas relacionadas à cultura de cada local, onde heróis, deuses e semideuses surgem como expressões arquetípicas que falam sobre o que é comum aos homens, sobre nossa realidade, nossa história, auxiliando na transmissão de valores coletivos. A Odisseia e a Ilíada de Homero, por exemplo, eram livros obrigatórios para a construção da identidade dos jovens gregos. Dessa forma, a veracidade e a pertinência do mito não devem ser ponderadas a parir do quanto é ou não literal, mas pelo que é explicitado por Karen Armstrong ao dizer que "um mito (...) é verdadeiro por ser eficaz, e não por fornecer dados factuais” (Armstrong, 2005, p. 14).
Portanto, o que vemos e lemos nos produtos de cultura de massa, incluindo os quadrinhos, não é o fim do mito, mas talvez um enfraquecimento da mitologia clássica, em prol de novos heróis pertencentes a uma narrativa mais romanceada, mais factível com nossa realidade. Umberto Eco, em seu livro Apocalípticos e Integrados (2000), trata dessa diferenciação, apontando como enquanto o herói clássico inseria-se em uma narrativa voltada a fatos passados, o herói atual, dialogando com a civilização do romance, volta-se para o presente e o futuro, onde suas ações são tão imprevisíveis quanto nossos próprios atos. Em muitos casos, tais ações e personagens são passíveis de falhas, característica humana, o que ao invés de desmistificá-los, acaba tornando-os mais próximos do telespectador/leitor/público, ampliando a relação de projeção e identificação.
Nos quadrinhos, alguns personagens ainda trazem uma agregação entre as duas formas de ver o mito. Compõem características ou inspirações inerentes ao herói clássico, o que podemos chamar de mitema[2], enquanto prosseguem sua trajetória como heróis romanceados. Thor não é uma releitura contemporânea do deus homônimo? O Superman não pode ser visto como uma analogia norte-americana de Moisés, ou seja, o filho encontrado que se apega a um povo e os lidera e protege a fim de libertá-los do mal? O famoso personagem Goku de Dragonball e seus objetos inseparáveis, como a nuvem voadora e o bastão, nada mais são do que a versão modificada e em quadrinhos do famoso mito chinês de Sun Wukong, o Rei Macaco, contado por volta de 1570 na obra “A Jornada para o Oeste”. Muitos teóricos, inclusive, ainda citam Sun Wukong como uma adaptação de outro mito, indiano, do século III: o Rei Macaco Hanuman, encarnação do deus Shiva.
Caixa de texto:  
Fig 2.3 Stan Lee.
Stan Lee
O roteirista Stan Lee soube usar muito bem essa agregação das formas de mito nas décadas de 1950 e 1960 nos EUA. Junto do estilo único do ilustrador Jack Kirby, eles foram criadores ou trabalharam no conceito de quase todos os personagens da Marvel: Quarteto Fantástico, Thor, Hulk, Homem de Ferro, os X-Men, Surfista Prateado, os Vingadores, entre outros. Cada um desses super-heróis, desses mitos coloridos das páginas dos gibis, levava uma característica mais humana em sua concepção. Os autores retiram os heróis de seus pedestais de deuses e os nivelam com os humanos/leitores. Tony Stark/Homem de Ferro com seus problemas com a bebida, o Homem-Aranha que, enquanto salva sua cidade, tem de enfrentar os problemas comuns da adolescência e da entrada na vida adulta, inclusive os financeiros etc.
O personagem do quadrinho japonês também trabalha com essa escolha do autor pela humanização, porém em uma boa parte dos casos, de forma diferente. O que é conferido não é o humanizar de uma versão pop e moderna do herói mitológico, mas a gradual transformação em “mito” de uma pessoa comum:
No moderno mangá (e animê), os heróis são desenhados a partir do mundo real. Neste aspecto incide a diferença fundamental em relação aos personagens ocidentais – são pessoas comuns na aparência e de conduta modesta. Podem ser funcionários de companhias, estudantes, aprendizes em restaurantes, esportistas, donas de casa que entretanto, no decorrer da história, podem realizar coisas fantásticas. Podem se envolver em romances, voar para o espaço ou se defrontar com um suposto chefe de escritório numa sangrenta batalha. Eles podem ser tudo
o que desejam, em imaginação, desde que se atenham às normas de sua vida social (Luyten, 2000, p.71).

O indivíduo que vai, aos poucos, aperfeiçoando a si mesmo a fim de conquistar o que almeja ou solucionar um problema que o aflige ou aos que o rodeiam. Essa característica pode ser associada, em parte, à filosofia oriental do bushidô (“caminho do guerreiro”), um código de conduta samurai na época do Japão Feudal e hoje reinterpretado para atividades empresariais. Com influências do Budismo, Confucionismo e Xintoísmo, representa uma eterna e inalcançável busca por perfeição não apenas para ganho pessoal, mas em nome de outro, seja o imperador (para os samurais) ou o país (para o empresário).
O bushidô mesclado com o capitalismo surge, como já descrito no capítulo anterior, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a busca por revanchismo ideológico. A missão de recolocar o nome do Japão como potência estabeleceu-se no pensamento da população e a superexploração do trabalho, fator determinante, embora discordante, da recuperação e modernidade japonesa, foi creditada a uma fidelidade à figura da Nação e, por tabela, à empresa, que ocuparam o cargo que anteriormente era do Imperador[3]. O resultado: o crescimento japonês na década de 1960 prosseguia em 10% ao ano e na década de 1970 era de 5% anuais, mesmo com as duas crises do petróleo. Com a palavra, Sonia Bibe Luyten (2000, p. 23):
Os anos 60 foram também uma década de fome de estudo. Ao mesmo tempo que o número de estudantes inscritos nos colégios e nas universidades aumentou muito, partiam delegações em direção a todas as partes do mundo em busca de novas informações, para depois serem minuciosamente dissecadas e reaproveitadas nos moldes nipônicos (...)Foi especialmente a partir dos anos 60 que o mundo passou a ter conhecimento da nova potência industrial e econômica que ia surgindo.


Desde aquela época, perdurando até hoje, eram comuns mangás que incitavam a continuidade dessa filosofia de perseverança, trabalho em equipe e autoaprimoramento, principalmente os com temática esportiva e histórica.
Caixa de texto:  
Fig 2.4 Ashita no Joe.
Ashita no Joe
Como um bom exemplo, podemos citar o mangá sobre boxe Ashita no Joe (“Joe do Amanhã”), de Tetsuya Chiba e Asao Takamori (1968), sobre o jovem Joe Yabuki. Inicialmente, o personagem principal é desordeiro, briguento, sem futuro, mas quando começa a ser treinado, quando lhe dão uma motivação e, principalmente, orientação, seu caráter vai gradualmente modificando-se, junto de suas habilidades como boxeador. Pode-se concordar que não há nenhuma novidade no roteiro, nada que já não tenha sido usado em outras obras até mais conhecidas do grande público, porém, o diferencial da série está em como foi interpretada mediante a realidade japonesa da época. Em seu artigo sobre Ashita no Joe[4], Alexandre Lancaster (2010) cita Paul Gravett, autor de “Mangá – Como o Japão reinventou os quadrinhos”, que explica (2006, p. 58):
(...) Nessa história de um pugilista japonês disposto a usar seus punhos e lutar contra todos, o ringue parecia concentrar todos os conflitos morais que permaneciam sem solução no Japão desde a guerra. Além da alegação de que a história transformava a violência em uma virtude, as pressões para interromper Ashita no Joe podem também estar relacionadas à adoção do personagem por grupos políticos e terroristas (...). Tanto isso é verdade que, em 1968, ano em que ele apareceu pela primeira vez, equestradores do Exército Vermelho Japonês sabiam que todos compreenderiam sua motivação quando declararam: “Nós somos os Joes do Amanhã”. Logo em seguida, o personagem foi adotado pelo movimento de contestação dos estudantes japoneses, a ponto de alguns terem rotulado a série como “A Bíblia dos Estudantes Extremistas” e a culpado por incitar a violência durante as demonstrações de rua contra a Guerra do Vietnã e o apoio do governo aos EUA.

Joe Yabuki conseguiu ir além. Como o personagem tem uma origem humilde, vindo da favela japonesa (sim, há favelas japonesas), sua mensagem como signo fortaleceu-se, deixando de ser uma simples representação gráfica/imagem psíquica de um boxeador que almeja uma carreira de sucesso para legitimar-se como uma interpretação do inconsciente coletivo japonês, suas frustrações da época pós-Guerra. Martine Joly conceitua essa atitude, a partir de Roland Barthes, como uma retórica da conotação, “a faculdade de provocar uma significação segunda a partir de uma significação primeira de um signo pleno” (1996, p. 82), ou seja, a partir de interpretações subjetivas, uma imagem que traduz algo diferente de seu significado denotativo.
Aos olhos dos japoneses, Joe, assim como os muitos outros personagens que viriam a seguir, era, enfim, um mito que se tornava real.


Referências

§ Livros e teses
ARMSTRONG, Karen. Breve história do Mito. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1993.
BULHÕES, Marcelo. A Ficção nas Mídias. São Paulo: Ed. Cultrix, 2009.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2005.
DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: Ed. A regra do Jogo, 1983.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2000.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GRAVETT, Paul. Mangá – Como o Japão reinventou os quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2006.
GUSMAN, Sidney. Mangá: hoje, o único formador de leitores do mercado brasileiro de quadrinhos. In: LUYTEN, Sonia B. (Org.); Cultura pop japonesa: mangá e animê. São Paulo: Hedra, 2005. p. 79-84.
LANCASTER, Alexandre. Ashita no Joe, de Ikki Kajiwara (Asao Takanori) e Tetsuya Chiba. Maximum Cosmo, 2010. Disponível em: http://www.interney.net/blogs/maximumcosmo/?cat=3041 (acessado em julho de 2010).
LUYTEN, Sonia Bibe (org.). Cultura Pop Japonesa: Mangá e Anime. São Paulo: Ed. Hedra, 2005.
________________. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Ed. Hedra, 2000.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos, São Paulo: Makron Books, 1995.
________________. Reinventando os Quadrinhos, São Paulo: Makron Books, 1997.
________________. Desenhando os Quadrinhos, São Paulo: Makron Books, 2002.
NITOBE, Inazo. Bushido – Alma de Samurai. São Paulo: Tahyu, 2005.
PERELMAN, Chaïm; TYTECA, Lucie Olbrechts. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para contadores de histórias e roteiristas. Rio de Janeiro: Ampersand, 1997.
§ Entrevistas
Entrevista com o editor Sidney Gusman. Site Fan boy (2007). Disponível em: http://www.fanboy.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=63 (acessado em julho de 2007).


[1] Ressalva-se que no pensamento desses autores, o mito é visto basicamente como sinônimo de religião.
[2] Segundo Durand (1983), um resumo abstrato de uma situação mitológica; um esqueleto da obra. O mitema é a menor unidade com sentido que compõe o mito.
[3] De 1945 a 1955, a nobreza foi abolida e o Imperador, mesmo mantido como símbolo da unidade territorial, perdeu sua imagem de “Deus vivo”. (Luyten, 2000).
[4] http://www.interney.net/blogs/maximumcosmo/?cat=3041


Victor Almeida é produtor editorial, graduado em Comunicação Social e pesquisador de quadrinhos.

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