Desorientar-se é fundamental


Foto da artista plástica iraniana Shirin Neshat


Orientalismo, trabalho mais famoso do intelectual palestino Edward W. Said, deveria ter lugar reservado na cabeceira da cama de qualquer jornalista minimamente preocupado com a política internacional. Ainda mais nesses dias em que o Oriente Médio chama tanto a atenção.
Para começar, o livro descontrói a dicotomia Ocidente/Oriente, tornando mais difusa a separação entre esses dois “mundos”. Logo no prefácio o autor já afirma que o Oriente “não é um fato inerte da natureza. Ele não está meramente ali, assim como o próprio Ocidente tampouco está apenas ali”. E reforça: “nem o termo “Oriente” nem o conceito de “Ocidente” têm estabilidade ontológica; ambos são constituídos de esforço humano — parte afirmação, parte identificação do Outro”.
Said prossegue demonstrando como as nações colonizadoras de séculos passados se aproveitaram da criação de uma representação homogênea do “Oriente” para reforçar sua própria imagem e servir aos seus próprios interesses. Militares em missão na índia, por exemplo, se tornavam especialistas sobre o Oriente todo, mesmo sem falar a língua de qualquer um dos diferentes povos que faziam parte da região.
O oriental, o colonizado, era uma espécie de cobaia, que não tinha voz, já que um especialista, sempre visto como superior e mais civilizado, falava por ele. Muitas vezes esses orientalistas, termo que hoje é visto com bastante receio, usavam de estratégias que beiravam o ridículo para poder compreender o seu “objeto de estudo”, como se infiltrar disfarçado entre os nativos para compreender seus ritos religiosos e costumes sociais.
“Um homem oriental era primeiro um oriental e, só depois, um homem”. A visão de quem falava sobre os árabes era sempre de cima para baixo. Infelizmente, essa tradição “erudita” acabou criando um modelo que até hoje influencia a academia e a imprensa. Said cita casos de estudiosos que percebem os erros cometidos por autores de séculos passados, mas que trocam suas próprias opiniões pela autoridade de um livro, reforçando o “modelo” construído anteriormente.
Não faltam exemplos para demonstrar a presença dessa tradição orientalista nos dias de hoje. As revoltas que se levantaram nos países árabes recentemente foram retratadas como uma vitória do modelo de democracia ocidental ou um plano construído pelos “radicais islâmicos” tomarem o poder, mas dificilmente como levantes genuinamente populares, como se a população daqueles países fosse incapaz de se revoltar.
Essa ideia de ressaltar a incapacidade dos árabes vem de longa data. Said conta que Alexander William Kinglake, escritor e historiador britânico que viveu entre 1809 a 1891, achava que As Mil e Uma Noites era uma obra viva demais, inventiva demais, para ter sido criada por um “mero oriental, que, para fins criativos, é algo seco e morto — uma múmia mental”. Vale a pena lembrar que Kinglake também não falava o árabe ou qualquer outra língua classificada como oriental, e afirmava que viajar para o Oriente era importante para “moldar o caráter”, “a própria identidade”. Identificar o outro, para reforçar a si próprio.
Ao cobrir as revoltas árabes, outra parte da imprensa insistiu nas ameaças de uma liderança islâmica tomar o poder no Egito, após a queda de Mubarak, ignorando o fato de que o Egito é um país islâmico: 90% da população é formada por muçulmanos sunitas. E, principalmente, ignorando o fato de essas são revoltas seculares: o que move os protestos é a insatisfação com um ditador corrupto, não questões religiosas. Porém, muitas vezes a palavra “muçulmano” acaba sendo usada como sinônimo de “árabe”, e vice-versa. Sempre vale a pena reforçar: nem todo árabe é muçulmano, nem todo muçulmano é árabe.
E quanto ao terrorismo? Os tais homens-bombas? No cinema de Hollywood, os terroristas são, inevitavelmente, árabes. Jack Shaheen, professor da Universidade de Illinois, chegou a analisar mais de 900 aparições de árabes em filmes. Dessas, apenas 12 retratavam árabes de maneira positiva e outras 50 com neutralidade. O estudo virou livro e documentário: Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People.
Quando Timothy McVeigh, um soldado americano, matou 168 pessoas com um atentado terrorista em Oklahoma, em 1995, não demorou muito até que o telefone de Edward Said tocasse: jornalistas queriam saber o que ele achava sobre o atentado. A razão foi o fato de que o escritor e jornalista Steven Emerson havia declarado, precipitadamente e antes de qualquer investigação, que aquele ato tinha “todas as características do terrorismo do Oriente Médio”.
A leitura de Orientalismo evitaria que muitas das bobagens e dos preconceitos que se originaram no século XVIII e XIX se repetissem até hoje. O livro, lançado em 1978, cobre muitos outros aspectos dessa tradição que ainda está presente na base dos discursos de atuais sobre o Oriente Médio. Parece que, pelo menos nesse caso, o melhor que temos a fazer é nos desorientar: desconstruir aquilo que achamos que sabemos sobre o “oriente”, para só então começarmos a entendê-lo.



Felipe Arruda, é especialista em Software Livre e trabalha como redator web. Mantém uma série de blogs e outras publicações sobre Literatura, Quadrinhos, Astronomia e o Oriente Médio. Mais informações podem ser encontradas no endereço http://felipearruda.com

2 comentários :

  1. É a sindrome da "moura": exótica, sensual, boa na cama mas... casar que é bom, necas! Os europeus, de corpos destruídos e massacrados, que viam e vêem no corpo a morada do pecado, só podem tratar o outro assim: como objeto de "estudo" para provar sua própria insensibilidade.

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